PICASSO, PICASSO,PICASSO

sábado, fevereiro 25, 2006

Pesadelo


Nem bom nem mau, sol meio-encoberto, era dia de almoçar fora e nem o "logo não janto cá" poderia alterar a certeza das coisas criadas pelos hábitos em nossas mentes.Calmo como sempre, esperou pelo último momento para me dizer aquele "não posso almoçar, tenho reunião" que me deixou perplexa e desmembrada." Vou contigo" - como me saíu aquela frase não sei, não é meu feitio impor-me ás excusas. Mas fui, aproveitando a novidade do lugar como prazer refrescante na minha vida monótona.

Apesar da bruma, da calçada liberta de carros podia ver-se o Tejo, turvado também ele, mas ainda assim azul, e o recorte cinzento da Sé - eu via-a assim - delineado nas convulsões azuis e negras que envolviam o alto. Nem o convite de um banco ficara esquecido sobre o empedrado da rua. "É tão bom namorar virados para o horizonte, pensei, parece que tudo se torna mais leve e duradoiro".

Perto, o casario mostrava toda a vetusta idade, mas não desmentia o bom-gosto e o dinheiro com que, longe no tempo, alguém os tinha mandado erigir.
Uma porta giratória onde alguns vitrais coloriam e suavizavam o descuro de vidro rachado - mal empregado, pensei, e eu que tanto desejo uma casa assim, que carinhos lhe não dispensaria - introduziu-nos no hall amplo mas confuso, com uma escadaria que completava exemplarmente o cariz apoteótico-burguês, agora confrangedoramente decadente.

Seria ali a reunião. Movimento não faltava . Por entre corredores e salas e sem saber como , fui parar a uma espécie de cozinha , onde duas jovens exuberantes pareciam dominar, sem que os resultados fossem muito animadores. A larga mesa de madeira retalhada ofereceu-nos aqui e ali uma espécie de tapas de confecção pouco sugestiva, mas sobretudo uma travessa de macarrão recheado não sei de quê: degluti-o porque tinha fome, baldou-se o meu esforço de o apreciar. Ele, sempre tão parco, alimentou-se sem esquisitices e desapareceu. Decerto o trabalho começara. Que fazer agora, ali abandonada em campo desconhecido, sem que ninguém me prestasse a mínima atenção. Restava-me o exterior, pensei, aquele banco e o Tejo a meus pés, a imaginação a navegar de mansinho com as águas. Respirei fundo , sentei-me cruzando as pernas, e fiquei ali, balouçando nas horas.

Perdi-me nos limites da realidade. Seres estranhos acordaram-me do torpor abençoado, e vi-me ser atacada por grandes e coloridos coleópteros,que se me agarravam à pele sôfregamente, coloridos olhos de íris aterradoras. Terminara o meu repouso beatífico e um desespero tomou conta de mim, enquanto me sacudia frenéticamente para acabar com aquele ataque.Curiosamente, o meu terror não estava isento de admiração. Que cores tão fascinantes e tão simultâneamente repelentes! Supus-me alvo de maléficas e impenetráveis atenções de um Além desconhecido, e voltei, correndo, em busca do abrigo daquelas velhas paredes que agora, mais desperta, já me assustavam com suas teias de aranha nas janelas e um certo ar impudico no ambiente.

Assustada, empurrei uma porta que franqueava o toillette. Esconjurei a sorte: acabava de quebrar a intimidade de um homem de olhos amendoados,estranhamente pouco incomodado. Acho que reconheci naqueles traços, algo orientais, um "velho" conhecido de outros tempos, impossível agora de localizar. Reconhecimento mútuo?
Estás à procura dele? Sim, disse eu, como se fosse natural ele ler- me o pensamento e a inquietação. Está além, naquele quarto - informou-me, cúmplice - vai devagar e não te surpreendas .

Petrifiquei. Petrifiquei? Como, se o sangue acelerava em mim e eu me sentia já um daqueles enormes bichos que há momentos se colavam à pele. Senti crescerem-me umas enormes garras e o corpo retesou-se numa tensão imensa. Quase não conseguia dar os passos para encurtar a distância que me separava daquela porta amaldiçoda. Arranhei-a com força quando pus a mão a rodar a maçaneta, tomada de fúria, joelho em riste. Ah, era aquele o tipo de reunião!...Meu calmo e tranquilizador amor, como este gesto vai mudar nossos rumos!.

Rodei, empurrei e acordei , o coração batendo vertiginosamente...


estórias de sonhos

6 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns! Gostei de ler! Finalmente quebrou-se o silêncio! Abençoados blogs e possibilidades intérnéticas que permitirão sair da letragia e transformar os sonhos, os pesadelos, as solidões e as neuras em histórias salvadoras a partilhar!
Zu

Anónimo disse...

Bravo...e que tal uma estória interminável

Anónimo disse...

Ao ler senti a penumbra de espiritos libertadores que assolam os nossos medos. Na realidade, os pesadelos não estão nos sonhos, mas na realidade nua e crua que nos acorda para o torpor das violências.
Um Blog desta natureza é o sentir de uma alma nova que nos conduz a outros espaços.
Adelante, Hasta luego - Milok...

Anónimo disse...

gostei do "prumenor" da "letragia" da zu. abstraindo disso gostei bastante. bjs ester

Anónimo disse...

Very pretty design! Keep up the good work. Thanks.
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Anónimo disse...

Looks nice! Awesome content. Good job guys.
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