Já há dias que me perseguia a saudade de olhar a cidade, mirá-la lá do alto , ver o casario a escorrer até ao Tejo, fugindo à imponência do Castelo e à bem-aventurança da Sé, para refrescar a alma da trivialidade quotidiana.
Cedo, artilhei-me com trajo cómodo e prendi a câmara fotográfica à cintura. O carro não serve estes propósitos, pensei, vou democratizar-me, usar o metro e as pernas, prática decisão e boa para a saúde. O comodismo embota-nos a perspectiva e damos connosco num dia-a-dia de mordomias que nos enchem o corpo de colesterol e de"pneumáticos". Não é bem o caso, considerei confiante, mas é bom prevenir, que estas coisas espreitam devagar e, bumba, surpreendem-nos quando menos esperamos.
O Sol forçava o poder do calendário que se tinha imposto toda a semana. No céu só de quando em quando alguns farrapos brancos manchavam o tom. Entrei no metro, arrostando com as habituais lutas corpo-a-corpo, os mendigos que estendem mãos e ladaínhas - como estou céptica, meu Deus, porque não acredito mais na maioria deles, presentes, dia após dia, nos mesmos locais, horário de trabalho a cumprir, rotinas de necessidades?! Talvez seja dos embustes que já sofri, de histórias que me foram contadas e de alguma convicção do sofrimento escondido por grande parte dos verdadeiros necessitados. Custa-me pensar que este meu cepticismo possa ser injusto para alguns, talvez torne a suavizar-me .
Cheguei à Baixa incólume, enchi os pulmões de ar e os olhos de prazer. Como se impôem ainda hoje aqueles velhos edifícios, gloriosos do seu passado e linhagem, que isto de arquitectura também tem que se lhe diga. Não misturemos as categorias, por muitos perpassa a sua época e classe, impondo-se à vulgaridade de tantos outros.
Disposta a um olhar diferente pelos cantos esquecidos da cidade, em busca de emoções estéticas, perdi-me na contempação do velho burgo. Resolvi, depois, subir à nossa Torre Eiffel. Porquê esta identificação do elevador de Sta Justa, será apenas a proximidade das respectivas autorias? Satisfez-me a amplitude, apesar do alto preço a pagar pela vista magnífica da cidade - e pelo sumo de laranja na pequena esplanada do alto, adocicado no morno canto brasileiro - esperaria um fado, um vira, mais alma lusitana? - o Tejo beijando as orlas da costa, o Castelo e a Sé a imporem-se na esquadria pombalina. Reconheci, no meu, o olhar de Maluda sobre o casario rosado.
Na descida, não ousei a escadaria vertiginosa que me apertava o peito. Resolvi voltear pelas ruínas do Carmo, volutas que se arredondam nos esqueleto que remanesce. Lembram a beleza das velhas damas nos destroços da idade, reflecti. A mocidade foge, a estrutura mantém a sua dignidade. Desci as velhas ruas, de que me envergonho não fixar os nomes.O facto de não ter nascido lisboeta não o justifica. Já o sou por permanência e mérito. E o amor que dedico à cidade torna isso imperdoável. Decido corrigir-me.
Desci a Rua do Carmo a pensar que outras invocações me esperavam na Gulbenkian. É verdade que o chá quente me deliciou nesse fim de tarde. O bolo de amêndoa, pecadilho, não menos. Valha-nos o prazer do estômago, já que, na visita, alguém sussurrou "o rei vai nu". Ao lado, a "cabana" construída por livros convocava-nos para novo desafio. Uf, posso recusar, consolei-me. O espelho, no interior, afigurou-se-me pouco convincente. Cobardemente, aos dois passos em frente seguiram-se dois atrás, e suspirei de alívio, humilde e vencida.
Acabei o dia satisfeita, cumprida a missão de o viver. Saído das chuvas da semana, um cogumelo esplenderoso desafiava a pedregosa aridez de uma das mais importantes artérias de Lisboa, apostado no seu momento.
1 comentário:
Qual mocidade, qual idade... O espirito apresenta-se mais jovem que nunca, e esse sim, e o verdadeiro desafio!
Gostei particularmente do pormenor do cogumelo: tal como o "viajante" e "heroi" desta estoria, confiante da sua hora e curioso, a espreita...
Joao
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